A História como disciplina, por muitos e longos anos chamou, hoje sabemos erroneamente, diversos saberes e práticas acadêmicas de “ciências auxiliares”. Disto se depreendia que os arqueólogos, por exemplo, existiam e trabalhavam para munir de documentos históricos, os historiadores. Porém, cabe informar ao caro leitor (a) que a “guilda” já pediu desculpas e fez as pazes com os arqueólogos.
Uma destas “ciências” que hoje caminha independente, depois desta revolução libertadora na área do conhecimento científico, é a Numismática (da raiz latina numisma, moeda). Esta arte se concentra em classificar, catalogar e até mesmo criticar esteticamente o dinheiro, chamado poeticamente pelo memorável compositor de “vil metal”. Assim, quando os historiadores dela lançam mão é na intenção de utilizar as moedas como “documentos históricos”. Tais vestígios são usados para construir o conhecimento do passado humano. (se o iniciado(a) viu Henri-Iréneé Marrou aqui, viu certo).
Certa vez num evento acadêmico de história antiga contendia-se acerca de um trabalho que acabara de ser apresentado. A questão era que, segundo o questionador, as conclusões se baseavam excessivamente na tal da numismática e, portanto, eram de baixa confiabilidade. O sujeito dizia que, assim como nos dias de hoje, no mundo antigo greco-romano ninguém dava muita importância para o que estava gravado na inscrição e na efígie das moedas (em termos populares na “cara e na coroa”). Em um ataque quase mortal, do ponto de vista de uma discussão historiográfica, o questionador pedia um só exemplo de um documento do período que apresentasse pessoas conversando ou discorrendo acerca do que era gravado nas moedas. O sujeito que apresentava o trabalho havia se apoiado em ampla bibliografia que, por sua vez, afirmava que as pessoas olhavam sim as moedas e pensavam acerca das informações que elas traziam. Porém, na fria hora das apresentações de trabalhos em congressos ele não conseguia se lembrar de uma mísera passagem que mostrasse o que o questionador inquiria. Mas o apresentador do trabalho estava com sorte naquele dia pois estava lá na plateia um sujeito mais raro ainda do que quem sabe o que é numismática: um historiador crente (do subtipo protestante histórico). Ele se lembrava de um documento histórico notadamente do primeiro século no qual um influente homem, apesar das origens humildes, perguntava, com uma moeda na mão a um grupo considerável de pessoas: “De quem é esta efígie e inscrição?” ao passo que aqueles homens responderam prontamente: “De César”. A sala ficou espantada com o fato de que ninguém havia se lembrado desta passagem do evangelho de Mateus e como ela era pouco disputada por céticos, serviu de maneira excelente ao propósito. Bem, o questionador se assentou e calou pois não fazia mais muito sentido o seu argumento inicial.
Ao pedir uma análise numismática rápida, Jesus de Nazaré, o Cristo, tinha a intenção de dizer aos fariseus e herodianos que dessem a César o que era de César, isto é, que pagassem impostos. E para isso usou uma moeda como uma brilhante estratégia andragógica. Irei, humildemente, usar também a moeda como uma analogia do espaço de debate contemporâneo em nossa sociedade.
Resumindo, me parece que o diálogo, sobretudo nos espaços virtuais, vai minguando, indo de mal a pior. Acompanhando a internet desde os tempos do Modem 56k, percebi nos últimos dez anos e de forma acentuada nestes últimos cinco, o surgimento de duas categorias “tribalizantes”: Lacrar[sic.] e Mitar[sic.]. Estas duas palavras se tornaram, para minha densa preocupação, verbos conjugáveis usados, respectivamente, pela esquerda e pela direita militantes de redes sociais assumindo exatamente a mesma função e conotação do dito popular “são dois lados da mesma moeda”.
Aquele que Lacra, faz o quê? Fecha, interrompe um fluxo, faz com que nada mais por ali possa passar. Aquele que Mita, faz o quê? Tem atitude semelhante ao do Mito, isto é, dita regras primevas e inquestionáveis a determinada sociedade humana (se bem que creio que no caso daqueles que criaram essa terminologia pensaram mais nos poderes sobrenaturais dos personagens comumente contidos nos mitos). Qual a diferença entre as duas atitudes? Eu me arrisco a dizer: essencialmente nenhuma. Ambos os posicionamentos estão postulando declarações inquestionáveis, irrebatíveis, “que qualquer um, em sã consciência, sabe que só se deve concordar” (frase infelizmente real que li dia desses). E aí, claro, entra a tribo ou torcida, como queiram, que aplaude e repercute vertiginosamente a Lacrada ou Mitada em questão. O fundo abissal do poço é alcançado quando o número de replicações digitais, da dita postagem, é percebido como validadora de sua inquestionabilidade.
Se não há um espaço mínimo ao questionamento, à discordância, ao diferente, não haverá diálogo algum. Se os nossos argumentos para discutir quaisquer aspectos relevantes da nossa tessitura social forem um amontoado de frases feitas que mais parecem ter saído de uma partida de truco num centro acadêmico ou de uma corrente de Facebook nunca reconheceremos no outro um ser com dignidade de ser ouvido.
Nesta perspectiva restará lançar a moeda para cima e ver de qual lado cairá. Entretanto não esperemos aleatoriedade para os rumos destes processos dialógicos pois os algoritmos estão aí para fazer-nos pensar que realmente as redes sociais, bem como todo espaço social virtual ou presencial deve ser ambiente de troca e escuta, abrindo mão de afirmações absolutizantes. As declarações que deveriam oferecer um espaço para algum embate, sim porque diálogo é disputa, na verdade os tem fechado permanentemente pois quando a moeda é lançada ao alto na sua cara há um Lacre e na coroa há um Mito.