Viver é melhor que sonhar

Podemos dizer que existem dois tipos de sonhos: aqueles que temos durante o sono e os que vislumbramos de olhos bem abertos. Os primeiros andam meio esquecidos, pingando aqui e acolá no papo de esotéricos ou de devotos que enxergam neles algum possível presságio. Por outro lado, os últimos — o tal “sonhar acordado” — é o frisson do século XXI, o sonho-meta, realização, desejo. 

“You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one”… Quem não conhece um sonhador? Às vezes você mesmo enche a boca para se classificar como um, afinal, que mal tem? “Sonhar é de graça”. Será?

Machado de Assis narra em um de seus contos a estória de Rangel, um solteirão com mais de 40 anos à procura de uma esposa. Conta o Bruxo do Cosme Velho que, numa noite de São João, sr. Rangel estava a participar de uma roda de brincadeiras na casa de um amigo chamado João Viegas, que por sua vez era pai de Joaninha, uma moça pela qual Rangel estava interessado. 

Ciente de que a encontraria, Rangel escreveu uma carta para declarar seu amor pela mencionada donzela, mas ele possuía uma característica bastante peculiar: era um sonhador inveterado. Desde os tempos de sua mocidade passava as horas a sonhar com as pompas da realeza, infiltrando-se em bailes de gala apenas para imaginar-se no lugar daqueles garbosos homens da corte, que tiravam as mais belas damas para dançar. Nesse ínterim, ignorou muitas oportunidades de casar-se com as mulheres que se interessavam por ele, pois sonhava alto e vivia em busca da “ocasião ideal”.

Do mesmo modo, naquela noite ele escondia a carta no bolso enquanto aguardava o momento perfeito para fisgar a moça. A bem da verdade, ele já teve outras oportunidades de fazê-lo antes, mas, para Rangel, em algum momento, naquela festa, ele encontraria a ocasião perfeita, a estratégia cuidadosamente calculada para arrebatar aquele coração.  

Porém, Rangel se esqueceu de colocar um importante elemento em sua “equação”, pois lá pelas tantas apareceu um rapaz bem apessoado de nome Queirós. Até então, Rangel tinha a mocinha na mão e acreditava ter a situação sob controle, como um hábil diplomata apenas aguardando o momento certo para agir. Contudo, Queirós veio como um furacão e fez todo esse planejamento se esfacelar tal qual um castelo de cartas. 

Altivo, esperto e engraçado, logo Queirós havia magnetizado os olhinhos da doce Joaninha, restando a Rangel apenas assistir seu amor escorregando pelos dedos. 

Seis meses depois, o mesmo Rangel foi convidado para ser padrinho do casamento de Queirós e Joaninha. Sozinho, até pensou em se alistar para ser oficial na Guerra do Paraguai, mas nunca o fez; ficou em casa a sonhar que ganhou algumas batalhas e retornou com a patente de brigadeiro.

Feita essa breve explanação eu refaço a pergunta: quem não conhece um sr. Rangel? Uma pessoa que sonha alto, arquiteta planos perfeitos, pavimenta mentalmente estradas para futuros gloriosos, mas nunca os realiza de fato? Ou talvez você mesmo se reconheça no personagem de Machado de Assis e se encontre cansado de caminhar por um longo boulevard of broken dreams? Se sim, não se sinta sozinho, pois, infelizmente, esse é um problema bastante comum.

De modo geral, o curso de nossa história tem empurrado as pessoas para esse remanso colorido de sonhos e falas motivacionais. Crescemos escutando sobre “sonhar alto”, “acreditar em seu potencial” e que não há nada que não possamos fazer; e agora, já adultos, somos bombardeados com farto material nas redes sociais para nossa imaginação trabalhar. 

Bastam algumas passadas de dedo na tela do celular para o feed do seu instagram te fazer pensar que seu apartamento é pequeno, sua esposa/marido não é lá essas coisas, seu carro é uma carroça e até que seu filho veio meio “zoado”, pois chegou aos sete anos sem saber tocar Chopin no piano. Enfim, sua vida começa a ser vista como uma chatice e talvez a única parte que te dá alguma satisfação é sonhar com aquilo que vê na tela do celular.

Outros fogem para o mundo dos games, onde podem ser o que quiser. Com o controle na mão, um cara sedentário e insatisfeito com a vida profissional pode ser o pistoleiro mais temido do velho oeste, um operador das forças especiais em alguma perigosa missão ou um cavaleiro mal-encarado e garanhão. Contudo, quando a campanha do jogo é concluída e o console é desligado, suas grandes “conquistas” continuam ali, escondidas nalgum canto do HD do aparelho, e ele volta à sua realidade, que nem sempre é muito agradável de encarar. 

Antes que me atirem pedras, eu não tenho nada contra redes sociais ou jogos de videogame em si, mas apenas estou a apontar como eles servem de muleta emocional para muitas pessoas que sofrem da “sina do sonhador”: sonhar de mais, fazer de menos. 

O pior dessa sina é que ela envolve suas vítimas de tal forma, que poucos percebem o círculo vicioso ao qual estão presos. Seja o emprego ruim, o casamento frio ou qualquer fato desagradável da vida, as redes sociais ou os games tornam-se janelas para um mundo ideal para onde a mente escapa, trazendo momentânea sensação de alívio — e aqui está a isca para a armadilha. Quando se passa a usar esses mecanismos como uma forma de driblar a própria realidade, logo se torna dependente dele, ou mais especificamente, das sucessivas doses de dopamina, neurotransmissor relacionado à sensação de prazer. 

A atuação dessa substância pode ser brevemente resumida assim: existem reforços negativos e positivos; o primeiro, por óbvio, envolve aquilo que é desagradável, como as coisas que nos causam dor ou angústia, enquanto o reforço positivo é aquilo que reforça em nós algum comportamento mediante sensações agradáveis. Ou seja, trata-se, em termos bem simples, de um mecanismo de punição-recompensa, no qual a dopamina entra em ação para recompensar-nos com sensações prazerosas.

Ciente disso, a indústria do entretenimento e da tecnologia investe pesado para estar sempre a favor desse mecanismo, promovendo experiências que estimulem a produção de dopamina em seus usuários. Calibra seus algoritmos para sempre trazerem conteúdos que prendam a atenção do consumidor, produzindo reforço positivo mediante a reiteração de estímulos que levam à produção sucessiva de dopamina. 

Rapidamente o sonhador é apanhado por esse fluxo e, pior, adquire um vício, que é perpetuado num “loop de feedback que atua através do sistema de recompensa de dopamina”, mantendo os usuários presos ao loop. Em termos mais claros, é esse mecanismo que deixa a pessoa “presa” ao celular durante horas. 

Mesmo que em eras distantes, Rangel e o sonhador moderno compartilham da mesma “sina”. São exemplares da mesma receita: sonhar alto e se perder em estímulos que levam à procrastinação e à dispersão. Nesse contexto, o tempo corre diante do sonhador sem que ele perceba e, quando finalmente precisa olhar de novo para a vida real só resta a ele aquela sensação: o que eu fiz do meu dia? O que eu fiz do meu ano? O que eu fiz da minha vida? 

Veja que sonhar nem sempre é de graça; às vezes custa um preço — e um alto preço. No entanto, o fim da conversa desenvolvida até aqui não é a abolição dos sonhos, mas um encorajamento a realiza-los da maneira correta: vivendo-os. Tampouco quero defender algum tipo de boicote às redes sociais ou videogames, apenas alertar que eles não são uma boa fuga, aliás, é melhor tirar proveito da boa inspiração que se pode tirar deles para escrever suas próprias histórias, vivenciar suas próprias aventuras. 

 “Viver é melhor que sonhar”, exclamava Belchior, e nisso o compositor cearense tem toda razão. Sonhos não são fins em si mesmos, tal como a luneta de um rifle só faz sentido à medida que se aperta o gatilho e o alvo é atingido. Você pode até sonhar alto (ou mirar alto), mas essa ação só é corretamente utilizada se seguida de ações direcionadas a realizar (tornar real) aquilo que é idealizado.

Sonhos foram feitos para “acabar”: ou resultam em desilusão, ou em experiência real. Cabe a cada um decidir onde eles encontrarão o fim, se na cova das desilusões, ou nas trincheiras abertas por si mesmo na luta para conquistá-lo. Uso aqui o exemplo das trincheiras justamente para afastar sumariamente qualquer interpretação triunfalista, pois geralmente as coisas boas que sonhamos não vêm ao sabor do vento, prontas para serem apanhadas como frutos maduros, mas são duramente perseguidas no travar de diuturnas batalhas pessoais.

Trata-se de um combate renhido, longo e desgastante, no qual a “motivação” — tão em voga nesses tempos de hiperestimulação — é de pouca valia. Melhores aliados são a disciplina e o domínio próprio, que garantem o avançar diário, palmo-a-palmo, conquistando até onde conseguir conquistar. Ao final, você pode até não ter alcançado tudo o que almejou, mas sua consciência repousará na dignidade de olhar para trás e vislumbrar uma vida bem vivida, uma peleja bem combatida e uma história bem escrita. A outra via é atrativa ao olhar e fácil de percorrer. Uma avenida plana e repleta de sonhos e estímulos a brilhar como letreiros luminosos; deslumbrantes de se ver à frente, insignificantes depois que ficam para trás. Aí é que, como ensina Sêneca, as pessoas temem olhar para o passado, pois os vícios “que serpeavam sob o encanto de algum prazer momentâneo” aparecerão para mostrar-lhes o tempo mal gasto.  Esse é o fim do pobre sr. Rangel e a sina de todo sonhador: uma vida muito sonhada e pouco vivida.

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