As emendas douradas

Certa vez, na casa de um distinto xogum do Japão feudal, uma tigela de cerâmica chinesa espatifou-se em vários cacos pelo chão. Tendo apreço especial pela fina peça, o nobre decidiu enviá-la para ser reparada pelos próprios fabricantes; contudo, grande foi sua decepção quando a tigela voltou toscamente remendada com grampos de ferro. 

Profundamente incomodado com aquela visão, o xogum ordenou que seus melhores artesãos encontrassem uma solução, e assim tais servos fizeram: “sangraram” uma árvore para extrair laca, uma resina com a qual reuniram os cacos da tigela, e, depois, num toque de genialidade artística, polvilharam pó de ouro sobre as emendas ainda frescas. Então, encantado com o resultado obtido no reparo da tigela, o nobre nipônico passou até a propositalmente quebrar outras cerâmicas. Vasos, pratos, bules, potes: todos foram ao chão para depois renascerem firmes e ricamente restaurados pelas emendas douradas.

Foi assim que — reza a lenda — nasceu a arte do kintsugi, hoje mundialmente conhecida e valorizada, que oferta a nós não só a oportunidade de apreciar finos exemplares cerâmicos com seus belos veios dourados, mas também oportuniza uma rica reflexão sobre a vida. Ora, quantos não se veem na mesma situação da tigela a qual me referi? Em cacos, restolhos sem qualquer serventia; ou mesmo, na tentativa de reunir seus fragmentos, veem em si mesmos as toscas cicatrizes, os remendos feitos de qualquer maneira na correria da vida. 

Todavia ,assim como no kintsugi, também existe uma forma correta de restaurar alguém em cacos — e é disso que falarei daqui pra frente.   

O corpo humano, diferentemente da cerâmica, possui certa tolerância ao estresse e capacidade autorregenerativa, porém, sob certas circunstâncias tecidos moles se rompem e ossos são fraturados. Para tratar de tais feridas, temos suturas, ataduras, técnicas e medicamentos, e, ao final, as feridas se fecham e os ossos se consertam, deixando apenas cicatrizes. Mas e as feridas da alma? Como fechá-las? E não menos importante: como encarar as cicatrizes que elas deixam para trás?

Até mesmo o vigoroso Davi chegou ao ponto de sentir-se “como um vaso quebrado” (Sl 31:12), vitimado por uma tristeza que consumia corpo e alma (v. 9); e o próprio Cristo experimentou agonias que transcendiam a dor meramente física, chegando a descrever sua alma como “profundamente triste até a morte”. Todavia, o Cristo que nos avisa sobre as aflições é o mesmo que, provando-as em si mesmo, venceu o mundo; e isso necessariamente orientará nossa perspectiva a respeito do sofrimento.

A famosa expressão “tende bom ânimo” não saiu dos lábios de qualquer um. Quem as disse foi o Bom Pastor, aquele que não só dá a vida pelas próprias ovelhas, como assegura: “eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão” (João 10:28). Portanto, qualquer sofrimento — mesmo a morte — não poderá aniquilar aquele comprado a peso de sangue, de sangue do martírio do Ungido do Senhor. 

Assim, podemos perceber a diferença entre um Davi sofredor que se descreve como “um vaso quebrado”, mas encerra o salmo afirmando que “o Senhor preserva os fiéis”; e o povo infiel da profecia de Jeremias sobre a “botija quebrada que não pode ser refeita” (Jr 19).  Os sofrimentos não sobrevêm sobre o povo de Deus para aniquilá-los, posto que nosso Salvador não deseja esmagar a cana quebrada, nem apagar pavio que fumega (Is 42:3), mas aperfeiçoar seu povo em direção à santidade. 

A confiança em um Deus que conduz seu povo na História implica na compreensão de que Ele também conduz a sua história em particular, esteja você a se esbaldar nos pomares de Salomão, ou jogado numa fornalha na Babilônia. E eu não uso essa palavra à toa, porque em Isaías 48:10 o Senhor afirma provar seu povo na “fornalha da aflição”, imagem que, como comenta C.H. Spurgeon, representa os meios pelos quais Deus “derrete, tenta e purifica” seu povo; portanto, as aflições são comparadas ao fogo purificador, que depura e separa ouro e impureza, e, dessa forma, os santos são trabalhados nas mãos do Divino Artesão, como bem definiu o puritano Thomas Brooks:

As aflições servem para reviver e recuperar graças decadentes; elas inflamam aquele amor que é frio, e eles despertam aquela fé que está decaindo (…) Quanto mais os santos são golpeados com o martelo das aflições, mais eles se tornam as trombetas dos louvores de Deus, e mais suas graças são reavivadas e vivificadas.

Diante disso, devemos rejeitar a ideia triunfalista de que “o cristão não pode sofrer”, equívoco que leva muitos a não conseguirem lidar com o mesmo sentimento relatado por Davi no salmo 31: de estar “em cacos”, imerso em profunda tristeza e ansiedade. Desse modo, por causa de uma perspectiva incorreta do sofrimento, vemos multiplicar o número de pessoas andando por aí com vergonha de si mesmas, homens e mulheres que carregam feridas mal fechadas, tapadas de qualquer jeito no desespero de (sobre) viver e de continuar “útil”. Justamente por isso, é preciso demonstrar que, sim, existe redenção “do e no” sofrimento.

Retomando a ideia do Kintsugi, existe um propósito no quebrantamento genuíno do coração, que é esmiuçado diante do Deus vivo para depois ser reconstruído de acordo com sua perfeita vontade, semelhantemente ao que o xogum fez com as suas cerâmicas. Na fornalha da aflição o Senhor refina seus amados e, assim como a cerâmica nunca mais volta a ser o que era antes, esses não saem da mesma forma que entraram.

O Divino Artesão não aceita emendas toscas e frágeis. No lugar de grampos e cola barata, ele reforça com ouro apurado em fornalha, de maneira que as cicatrizes já não são mais marcas da vergonha e inabilidade humana, mas sinais de nobreza em silente proclamação da habilidade do restaurador. Sendo assim, em cada dolorosa provação nós possuímos a maravilhosa oportunidade de descansarmos nas mãos santas de Nosso Senhor, bem como podemos olhar para dentro de nós sem temer cicatrizes rotas de dramas passados; encontraremos ali apenas as emendas douradas feitas pelo redentor de nossas almas.

Nisso encontramos conforto em meio às tormentas e, confiante nessa esperança, a Igreja cresceu e rendeu preciosos frutos mesmo nos tempos de feroz perseguição. O nosso tempo pode ser difícil à sua maneira, mas as verdades eternas continuam acima de nós, conclamando-nos a melhor entendê-las e aplicá-las; assim como estão inscritas ao nosso redor, no âmbito daquilo que podemos extrair delas na própria ordem natural, propiciando o desenvolvimento e o uso de técnicas que levem os homens à correta compreensão da questão do sofrimento.

Tais “verdades ao nosso redor” são a própria ordem natural, sobre a qual nos debruçamos para fazer uma leitura racional da realidade, explicando e compreendendo o mundo e a nós mesmos para resolver nossos problemas. Então, do mesmo modo que escrutinamos o cosmos ou inspecionamos o funcionamento de uma bactéria, a mente humana também pode ser objeto de estudo, empreitada que repousa sobre os ombros de várias áreas do saber, dentre as quais destaco a psicologia, ciência que fornece ferramentas muito válidas no tratamento dos aflitos de alma, daqueles que necessitam de um auxílio especializado para lidar com suas dores e traumas. 

 Dito isso, é importante destacar o reconhecimento das “verdades acima de nós” (verdade revelada)  não entra em conflito com o estudo das verdades que podemos extrair da ordem natural; aliás, a correta conjugação das duas noções foi crucial para o próprio florescimento da ciência moderna, impulsionado por homens devotos que enxergavam a ciência como uma forma de descobrir as marcas deixadas por um Deus pessoal em sua criação. Com a mente humana, que também faz parte da criação, não é diferente: existe espaço para compreendê-la e lidar com os fenômenos que a afetam, como é o caso do sofrimento.

Não se pode fugir da realidade do sofrimento humano, mas é possível, a partir da utilização de técnicas adequadas, tratar as feridas deixadas por ele. Tal como acontece com lesões físicas, as “lesões psíquicas” tendem à cicatrização, afinal, somos seres vivos e dotados de certa capacidade de regeneração, porém, caso não recebam o cuidado adequado, podem piorar (e muito). Ora, se uma ferida aberta no corpo deve ser limpa, medicada, suturada e cuidada até que o próprio corpo faça a cicatrização, igualmente acontece durante os cuidados com a saúde mental. 

Assim, mesmo que não se possa apagar as marcas deixadas pelo sofrimento, a psicologia representa um  instrumento proveitoso para o cuidado dos que estão passando por aflições, uma ferramenta da Graça Comum em cooperação para o processo de restauração dos aflitos de coração, acompanhando-os no caminho entre o “estar em cacos” e uma mente sadia e madura — firmemente integrada e enobrecida com “emendas douradas”.

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