Quando a pandemia começou, enquanto negacionistas reagiam ao que diziam ser “expectativas alarmistas”, outros entravam em crises psicológicas (pânico, depressão…). Mas um terceiro grupo evitou e atenuou esses extremos ao assumir posturas de prevenção para si mesmos e ações de cuidado e misericórdia para com os grupos de risco. Além disso, os profissionais de saúde e de outras atividades essenciais à vida têm se desdobrado, ainda que incorrendo em prejuízos pessoais e familiares.
Um ano depois (março/21), estamos vivendo dias sombrios com índices inimagináveis de contaminação e mortes. Durante os últimos meses de 2020, alguns acreditavam que o pior já havia passado, outros se diziam cansados de tanto tempo de isolamento social, de tantos cuidados preventivos… O fato é que o vírus não se cansa, pelo contrário, se desdobra em novas variantes mais agressivas. Enquanto isso, questões políticas impedem uma ação estruturada e eficaz na prevenção da contaminação e na aplicação de soluções paliativas (oxigênio) e/ou protetivas (vacinas).
Estamos vivendo um período de (a)normalidade que assumimos como “normal”. Vivendo em sociedade, estabelecemos um conjunto de normas, hábitos de agir que são aprovados por consenso ou pela maioria. Em “A patologia da normalidade” (Ed. Vozes), Pierre Weil denominou de “normose” esse estado de coisas: quando nos acomodamos a comportamentos que causam sofrimento e morte, muitas vezes atribuindo às fatalidades justificativas desumanizadas (“fulano/a não se cuidou”, “tinha comorbidades”) ou, ainda, explicações divinizadas: “foi Deus que quis assim”.
Como seres humanos desumanizados, nos apegamos a tudo que nos dá prazer (ideias, coisas e pessoas, muitas vezes reduzidas à categoria de objetos), evitamos tudo que provoca dor ou nos parece ameaçador, e nos mostramos inertes ao que não nos causa prazer nem dor, chegando a demonstrar indiferença ao prazer e à dor do outro.
Tornamo-nos desUManizados a partir do momento em que deixamos de ser UM com o outro. No relato do Eden (Gênesis cap. 2-4), vemos Adão (ish) se dissociando da sua isha, “osso dos meus ossos e carne da minha carne” ao acusá-la: “foi [por causa de] a mulher que Tu me deste”. Logo em seguida, vemos Caim desUManizando-se ao matar Abel e responder: “sou eu o responsável por meu irmão?”
No Decálogo (Êxodo 20), temos um mandamento negativo (“não matarás”) que afirmativamente nos determina a preservar a vida – a minha vida, a vida do outro, e toda a vida no planeta como fonte de recursos vitais para todos. Somente por meio desta rehUManização demonstraremos nosso amor a Deus e ao próximo. Levando a (sobre)carga pesada uns dos outros (Gálatas 2), cumpriremos o mandamento de Cristo: “um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros”. (Ev. João 13)
A pandemia levou-me a refletir (junguianamente) sobre a luz e a sombra que convivem em mim. Assim como confessou Paulo, apóstolo, eu também não faço o bem que quero, e pratico o mal que não quero” (Romanos 6-8). Tudo isso me inspirou a poematizar “Caim e Abel em mim”
Do prazer e dor
de Adão e Eva:
Caim, valor [1]
Abel, vapor. [2]
Caim, lavra_dor,
Abel, pastorea_dor,
irmãos em oblação.
Deus vê o coração.
Abel: grati_dão;
para Deus, bom bocado.
Caim: obrig_ação.
Para Deus, há pecado [3].
Deus: Abel, favor; Caim, não.
Caim: rancor.
– Abel, não!
– Caim, e Abel?
– E daí?…
Há Abel e há Caim em cada um de nós. Alguns se apegam mais a um papel do que ao outro: Abel, gratidão; Caim, rancor, ódio…
Lembrando que “não odiarás” tem o mesmo peso de “não matarás” (cf Jesus em Ev. Mateus 5.21,22), em meio a circunstâncias e motiv_ações diversas, quantos Abel’s temos assassinado?
Em tempos de Covid, ”onde está teu irmão?”.
Oseas Heckert (Engenheiro de Pessoas, Esp., MBA / São Paulo/SP)
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[1] Caim, do hebraico qayin, lança, ou alguém com autoridade para portar armas
https://www.abarim-publications.com/Meaning/Cain.html#.Xqrfq6hKhPY
[2] Abel, do hebraico havel, fôlego ou vapor
[3] Oséias 6.6: “não quero sua obrigação, quero seu coração”